Estou enviando este artigo do Pedro Porfírio, publicado na Tribuna da Imprensa de Hoje, pois acho importante que acompanhemos o desenrolar destes fatos. Tortura só não é crime político aqui. Vamos ver noque dá.
Abraços
Ulisses
Esta coluna é atualizada às segundas e sextas-feiras
Ai de nós se o STF consagrar a impunidade da tortura "A lei anistiou os crimes políticos e conexos. A tortura não é crime político em lugar nenhum do mundo. Tenho certeza de que o Supremo terá oportunidade única de fazer com que a história brasileira seja contada de forma não envergonhada, com a punição dos torturadores" (Cezar Britto, presidente da OAB, ao protocolar ação no STF).
O estranho parecer da Advocacia Geral da União e o pronunciamento "compensatório" do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, nos recolocaram em mais um pântano jurídico, típico de um mundo legal onde a incompetência, a pusilanimidade e a má fé se aliam em prejuízo dos direitos elementares dos cidadãos.
Dentro de alguns dias, o STF deverá se pronunciar sobre o questionamento da OAB em relação ao suposto benefício da Lei de Anistia aos torturadores. Autores da ação, os advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro assinalaram: "É irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo".
Com a iniciativa, a entidade contesta a mal-inspirada defesa que a Advocacia Geral da União fez dos coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, acusados de pelo menos 64 mortes sob tortura em instalações militares.
Nessa peça que compromete todo o corpo jurídico da AGU, a advogada Lucila Garbelini e o procurador-regional da União em São Paulo, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, afirmam que a Lei da Anistia de 1979 protege os torturadores: "A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir".
Ponto de partida
A ação do Ministério Público contra Ustra e Maciel é a primeira a contestar a validade da Lei da Anistia para acusados de tortura. Nela, os procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero pedem que Ustra e Maciel sejam responsabilizados civilmente por mortes no DOI-CODI, principal centro de repressão política em São Paulo entre 1970 e 1976. No período, segundo registros oficiais, 6.897 pessoas passaram por lá, número que pode ser bem maior, considerando suas práticas de braço clandestino da repressão.
Nada insulta tanto as Forças Armadas como essa muralha erguida por alguns recalcitrantes para assegurar a impunidade aos que usaram e abusaram do crime de tortura em suas instalações, durante a ditadura que se impôs pelas armas com a deposição de um presidente constitucional. Quando a defesa da "anistia" desses crimes é formulada por contraposição comparativa com os atos contestatórios pelo presidente da mais alta corte do Poder Judiciário, aí é lícito supor que a ditadura ainda está no sangue dos "gendarmes" civis.
Mais explícita é a posição do ministro da Defesa do Governo Lula, Nelson Jobim, outro que passou pelo STF por nomeação de FHC. - O que vai ser decidido pelo Supremo não é se alguém é a favor ou contra torturados ou torturadores. A questão é saber se o GRANDE ACORDO POLÍTICO da transição na década de 70, que deu origem à anistia, deve ser revisto interpretativamente ou não.
Por ironia, foi o sacrifício de muitos brasileiros torturados que contribuiu para livrar a magistratura do garrote que ceifou admiráveis juízes, como Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, Hermes Lima, José de Aguiar Dias e Osni Duarte Pereira, entre tantos próceres de uma Justiça que vem se desfigurando a olhos vistos.
Nada é mais desconfortável do que ver advogados bem sucedidos recorrerem a sofismas para contrapor-se ao clamor de uma história que não pode apagar crimes praticados por agentes de segurança, cujos excessos levaram dezenas de brasileiros à morte.
Estamos falando de violências praticadas no interior de instalações policiais e militares contra pessoas já aprisionadas, imobilizadas e sem a menor chance de escapar das sevícias e das matanças, como aconteceu com o ex-deputado Rubem Paiva, cuja morte é um dos mais cruéis corpos de delito daquele período trágico.
Crimes sem paralelo
Não há semelhança com nenhuma outra situação. Os que praticaram esses crimes faltaram com a própria ética castrense e não o fizeram no escuro da dúvida. Antes, como eu mesmo posso testemunhar, pareciam predispostos a uma sádica extrapolação de suas funções, com o que sobrepunham seus instintos perversos à prática investigativa.
Mesmo as execuções em operações de buscas tiveram o tempero do ódio e da irracionalidade. Os repressores já saíam em campo com a intenção de ELIMINAR os contestadores, alguns mortos depois de imobilizados, como aconteceu com Carlos Lamarca e no Araguaia.
Vale ainda lembrar que os agentes matadores não se limitavam a levar prisioneiros à morte. Como os bandidos que hoje carbonizam os desafetos, davam fim aos corpos de suas vítimas, ocultando cadáveres e negando aos seus entes queridos até o último olhar. Graças a esse clima de impunidade, muitos familiares ainda não puderam dar uma sepultura digna a seus mortos.
De todos os países deste hemisfério em que centenas de prisioneiros foram barbaramente torturados, muitos até o último suspiro, o Brasil é o único que insiste em negar o julgamento dessa súcia de sádicos celerados. Na Argentina, até os chefões das juntas militares estão purgando por seus crimes. No Chile, o general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte pagou caro como assassino e gatuno, apesar do "ACORDO" que havia garantido a ele permanecer por algum tempo à frente das Forças Armadas e, depois, no cargo de senador vitalício.
Querer passar uma borracha em tamanhas monstruosidades é dar foros de legalidade aos excessos letais de agentes públicos. Aí não importa a forma como a ditadura se desfez. A bem da verdade, os militares voltaram às suas funções constitucionais quando os regimes de exceção já não serviam aos interesses internacionais, financiadores do golpe de 64, encantados com a possibilidade de manterem o domínio com desgaste menor, através de civis mais hábeis, de colarinho ou de macacão.
A tortura praticada por alguns celerados não se enquadra em nenhum viés de cunho político, não cabendo nenhum benefício previsto na legislação de anistia. Se os torturadores (e assassinos) permaneceram impunes até hoje foi por pura covardia dos guardiões das leis e pela inércia de uma sociedade que ainda não se encontrou com o verdadeiro estado de direito.
Agora, no entanto, parece ter soado a hora da verdade.
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